quinta-feira, 10 de abril de 2014

A Humana Barbárie.

Eu não sei se sou um pacifista. Na verdade eu nunca me identifiquei como tal.

Mas nesses últimos dias, tenho sido conduzido a reflexões poderosas acerca da natureza da guerra, dos homens e do que é ser humano em geral. Tudo por causa da minha leitura de "Cartas no Front", talvez o livro mais emocionante que já tenha lido em minha vida. Nunca cheguei tão perto de derramar lágrimas em uma leitura como foi nesses últimos três dias (manly tears, é claro). Sério, acho que todo mundo deveria ler esse livro.

O que mais me emocionou e cativou em "Cartas do Front" foi que ele trouxe o lado humano da guerra. Para além de ideologias, motivações escusas, discursos políticos e ambições de  poderosos, temos os relatos de homens e mulheres longe de suas famílias, de seus amigos, longe de suas vidas, levados para o horror, a barbárie, toda a completamente desumanidade, para experiências que mudarão sua vida e o moldarão para o bem e o mal. 

Cada indivíduo é único, em sua singularidade e modos de enxergar o mundo e a realidade à sua volta. Esse é um dos maiores trunfos do livro: os diferentes pontos de vista muitas vezes refletindo os mesmos medos, desejos, anseios, sentimentos. Estamos acostumados a ver os grandes conflitos mundiais sob a ótica dos vitoriosos, mas através desse livro aprendemos que um nazista não é menos humano do que um americano. Que nem todo iraquiano é um terrorista, que se autodenominar cristão não lhe dá o direito de julgar um estrangeiro, de se sentir melhor do que o "inimigo". É uma experiência para abrir os olhos frente à muitas coisas da vida.

Passam-se as guerras, mudam-se os cenários, mas o homem continua a ser o homem. Alguns encontram sua fé, outros se reduzem ao niilismo, mas o homem - a despeito dos riscos de uma progressiva perda de humanidade, dos quais muitos são acometidos - continua a ser homem.

Uma das coisas mais lindas e emocionantes que eu li nele foi o modo como indivíduos que foram inimigos ferrenhos durante esses conflitos acabaram encontrando uma paz entre si mesmos e profundas amizades que se estendem por anos. Quando o autor, Andrew Carroll, visita Saravejo e ouve a história da morte do pai de seu guia, afirma contundentemente "Meu Deus, você deve odiar os sérvios". Ao que seu guia, Amir, responde:

"Não! Não e não. Já houve ódio demais. estou cheio de tudo isso. Minha namorada é sérvia. Muitos sérvios em Saravejo e em toda a Bósnia sofreram(...). Uma hora isso precisa acabar. Já houve o bastante. Tem que acabar". 

E quando Andrew, marcado por aquela profunda demonstração de compaixão, pergunta a Amir como ele poderia tê-la diante de tantos horrores que teve de encarar, a resposta é: "Somente quem passou por isso pode realmente entender como é ruim".

Outras passagens reforçam esses atos de reconciliação: o memorial das vítimas em Stalingrado, na Rússia, executa canções de Schumann (um compositor alemão) como um aceno para os alemães que também perderam milhares de seus homens nessa batalha; um piloto americano mantém contato com um piloto japonês mesmo sessenta anos após o ataque de Pearl Harbor; o filho de um outro piloto americano casa-se com a filha de um soldado japonês; um capitão austríaco mantém uma amizade de mais de quarenta anos com o capitão americano que tão bem cuidou e tratou dele após prendê-lo, escrevendo ainda uma carta de condolências à viúva de seu captor e amigo quando este morre. 

Quem pode entender esses tão estranhos e formidáveis laços, que surpassam toda e qualquer chance de ódio? Quem pode entender a mente de um homem que sobrevive à guerra, mas carrega feridas na alma que a muito custo serão tratadas? O cinema e a literatura estão cheios de histórias que romanceiam a guerra, de outras que tratam desses combatentes traumatizados, mas o diferencial deste livro é trazer a tona o sentimento genuíno que perpassa gerações e chega até nós. Somente quem esteve no campo de batalha pode nos dar a verdadeira ideia daquilo que enfrentaram. De encarar a morte com seus olhos. De sofrer nas mãos de inimigos bárbaros, mas também de receber ajuda da onde menos se espera, quebrando paradigmas, preconceitos. Acima de patriotismos, bandeiras e crenças, um inegável senso de respeito, confiança e lealdade, laços indefectíveis que se perpetuam ao longo dos anos, junto com as memórias boas e ruins daqueles que lutaram ao seu lado ou contra você. É impossível entender essas camaradagens. É impossível entender a guerra ou que os motiva, o que as faz serem tão destrutivas (mesmo quando seu objetivo é a paz), ou o que a faz produzir frutos tão inesperados. 

“Os veteranos que ofereceram cartas tão reveladoras esperavam que elas pudessem ter um valor catártico para homens e mulheres que servem hoje nas Forças Armadas. Ninguém pode entender verdadeiramente a vida militar – as constantes pressões, a separação dos entes queridos, tanto a excitação quanto o terror de seguir para o combate, o choque devastador de perder um companheiro – como aqueles que já passaram por isso. Os mais antigos veteranos simpatizam profundamente com a atual geração de soldados e querem que saibam que há algum conforto em perceber que outros também suportaram as mesmas dificuldades."

O verdadeiro sentido da guerra é expresso em pungentes passagens como essa:

"Embora a maioria das pessoas acredite saber o que é a guerra, será que sabe mesmo? – estando tão distante das frentes de batalha, será possível saber?
Só se sabe o que é a guerra quando se veem os aviões em formação no começo da manhã, voando em direção aos alvos... e se vê esta mesma formação voltando à noite. Mas o número já não é mais o mesmo! Doze partiram, nove voltaram. Fica-se ali, parado, olhando para o alto, observando-se afastarem-se, na direção do horizonte, e então desaparecer. O que de fato aconteceu? Aqueles que mergulharam em chamas... terão morrido como nos filmes? Creio que não. Não com um sorriso nos lábios e um brilho alegre nos olhos, mas talvez com a terrível e dolorosa consciência de que tudo chegava ao fim! É preciso ver a leva de feridos voltando da frente de batalha... acima de tudo, ver a luz se apagar nos olhos desses homens. Jovens tremendo devido à exaustão nervosa e chorando como bebês. São, ou foram, homens fortes, que não tiveram ou que jamais terão a chance de viver uma vida normal... As pessoas podem acreditar que sabem como é a guerra. Esse conhecimento é ilusório. Tenho um corpo despedaçado pela guerra, tomado de pavor até o fundo da alma. Quando estava nos EUA, a guerra era distante, irreal. Eu lia, via as fotos, mas agora eu sei."

Eu comecei esse texto dizendo que não sabia dizer se era um pacifista. Mas termino-o dizendo - e isso com base em tudo que extraí desse emocionante e catártico livro, dos seus incontáveis relatos que variam do mais leve humor ao mais sombrio desespero - que talvez o seja. Ninguém pode dizer o que esses homens e mulheres passaram, sejam soldados ou civis. Por vezes vejo em alguns dos relatos essas pessoas desejam que as gerações futuras encontrem a paz e não precisem mais guerrear  por motivo nenhum. O que diriam de nós se vissem o que nos tornamos? Que não cumprimos suas expectativas, tornando-nos cada vez mais mesquinhos, ignorantes, arrogantes e superficiais? Que estamos perdendo quaisquer valores que um dia nos foram passados, convertendo-nos em seres amorais e gananciosos? Creio que se mais pessoas lessem esse livro e se dessem conta do impacto que ele pode causar, poderia sim haver uma mudança. Afinal de contas, "Livros não mudam o mundo. Pessoas mudam o mundo. Livros só mudam as pessoas".

Por fim termino com mais uma passagem da obra, que reflete o senso de esperança que foi depositado em nós, o chamado que devemos atender.

"Chegaste a um mundo repleto de imensos problemas. Com inúmeros tormentos e condições deploráveis. Numa época em que graves e grandiosas questões dominam a mente humana e a guerra, a terrível guerra, enche as nações de desolação e pesar. Esse, no entanto, é o nosso bom e velho mundo. Há tanta grandiosidade e beleza ao nosso redor e em toda parte da natureza. Espero sinceramente que, à medida que tua pequena vida se expanda, sejas capaz de abraçar e reter, com extraordinário vigor, uma parcela dessa beleza, desse prazer e dessa felicidade junto de ti. E desejo que vivas para testemunhar os problemas que nos atormentam assentados sobre princípios de justiça e correção. E os homens aprenderão a não mais guerrear".