quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Todas as coisas boas do mundo.

Às vezes as palavras não podem expressar toda a gratidão.

Sabe quando há um sentimento de que as coisas vão bem contigo, de que você se sente bem consigo e o mundo ao seu redor? De que elas estão se direcionando de uma forma positiva? Então, esse sentimento me acompanha nos últimos dias. E isso é maravilhosamente bom. Enquanto que sentir isso não é garantia de que tudo vai bem, é realmente encontrar aquela paz em meio à tormenta, a paz de que eu precisava com tanto afinco. É dar graças em tudo.

Ontem fiz minha última prova. Cálculo. Integrais. Muita responsa. Precisava tirar 5,5 pra passar, sem necessitar da prova repositiva (feita para aqueles que não compareceram a uma das provas anteriores ou queriam repor a menor nota a fim de poderem passar). E sabe quando tirei? 9,5. Isso! Eu, o cara que perdeu em Cálculo no primeiro semestre, que tava penando ao longo desse período tanto quanto no anterior, tirei a segunda maior nota da turma. Você, leitor, pode imaginar a minha felicidade? A minha alegria em ter conseguido esse feito, de ter garantido a aprovação nessa disciplina que é de longe a principal para a continuidade do curso? Acho que pode. 

Mas não é só por Cálculo. É uma vitória muito mais significativa do que uma boa nota em uma prova. É por tudo que vivenciei dos últimos meses, pelas vitórias, derrotas, lágrimas e sorrisos. Experiências compartilhadas aqui no blog, o meu espaço, o meu pequeno recanto de confissões. E que também não poderiam refletir toda a turbulência do meu íntimo, toda a humanidade, falibilidade. Esse é o grande desejo do ser humano, não? Se entender por completo. Essa é a nossa busca, vivida de tantas formas, graças à singularidade do homem.

E nesse caminho surpresas surgem. Doces, que inebriam nossa alma. E é engraçado como elas acontecem de uma forma tão casual, sem a aura mágica da qual as cobrem, mas ainda assim nos impactam. Como um sonho.

O título desse texto vem de uma antiga ideia que tenho pra um livro. Não poderia dizer o que representa exatamente, mas talvez tenha a ver com isso: com gratidão, com um olhar positivo, lúcido, para o mundo, para o que há nele. É se apropriar dessa felicidade, fazê-la sua, transbordar-se dela e inundar os outros com ela. E viver nela, com essa paz que vem do alto. Que essas férias me tragam a reflexão e o direcionamento necessários, e que minh'alma e meu espírito estejam plenamente fortalecidos para os desafios que virão.

"É difícil ficar zangado quando há tanta beleza no mundo." 

sábado, 13 de setembro de 2014

Confessional.

Eu acho é lindo. Que meus dois celulares estejam quebrados, em tão pouco espaço de tempo. Eu acho é lindo. Que quando o imbecil aqui não cuida bem das suas coisas, elas param de funcionar por razões que estão além de minha compreensão. Eu acho é lindo. Perder a cabeça por coisas tão fúteis como dois celulares.

Ou talvez não seja só por eles. Talvez seja por muito mais. Talvez seja por 2014, esse ano assustador, difícil. Talvez seja pela saudade de casa. Talvez seja pelos sacrifícios necessários. Talvez seja pelos conflitos internos. Talvez seja por essa fragilidade. Talvez seja pelo estresse da universidade. Por ter deixado a desejar. Por um desejo materialista. Por uma solidão que grita em meio a multidão. 

Ou talvez seja só por eles mesmo e eu só seja um mesquinho.

E no momento de mais desolador desespero, eu ergo os olhos para o alto e dirijo minha raiva, angústia, vitimismo, para o Eterno. E às vezes Ele me responde, mas nem sempre como eu gostaria. Outras me deixa esperando em silêncio. O meu último (mas que deveria ser o primeiro) fio de esperança, a ilha no meio do mar tempestuoso. O porto seguro. Me escute, me ajude. Eu tô cansado dessa merda toda.

Um monte de gente não vai dar a mínima pro que eu tô escrevendo. Tudo bem. Importa-me como eu me sinto. O que está escrito aqui não é nada que não tenha escrito no blog antes, mas não é nada que mensure como ando me sentindo. Eu quero paz. Quero uma vida mais fácil e menos apertada. Quero não ter de esperar tanto. Eu quero muitas coisas. Mas quantas delas são realmente sensatas? Quantas delas me tornarão alguém melhor?

E no meio disso tudo a gente vai, com muita dor, lágrima e paciência, crescendo.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Pela extinção da carrocracia.


Esta é a foto de minha mão direita aberta. Da ponta do mindinho até a ponta do polegar, ela mede vinte centímetros. A maioria das mãos, não importa as diferenças entre elas, sejam de homens ou mulheres, tem medidas similares: 20 cm da ponta do mindinho à ponta do polegar, quando espalmadas. Guarde esta informação. Retornarei a ela mais adiante.

Recentemente, numa discussão tuiteira, o comediante Marcelo Tas criticou o programa eleitoral do candidato à presidência, Eduardo Jorge (PV). Em sua propaganda, Eduardo Jorge recomenda às pessoas que usem menos os carros.

Ao que parece, Tas entendeu que o candidato havia dito para as pessoas não usarem carros. Entendeu errado, e este tipo de coisa acontece. Após disparar uma ironia contra Eduardo Jorge, perguntando como fariam as pessoas que não têm “vida mansa” como a do candidato, Tas obteve como resposta um singelo soco com luva de pelica: ele, Eduardo Jorge, é médico sanitarista. E se move como a maioria das pessoas no Brasil: pega metrô, ônibus, anda a pé, usa bicicleta. Eduardo Jorge, elegantíssimo, nem sequer levantou a seguinte bola: teriam os brasileiros sem carro uma “vida mansa”? Fica subentendido, contudo, e a resposta todos nós sabemos: a última coisa que alguém que só pode andar de transporte público tem é uma “vida mansa”.

Tas não se deu por satisfeito e acusou Eduardo Jorge de hipocrisia, ameaçando postar uma foto do Eduardo dentro de um carro. Convenhamos, ameaça ridícula, considerando que em momento algum o candidato negou andar de carro. Ele não disse "não andem de carro nunca". Ele pediu o que qualquer pessoa minimamente saudável e razoável já sabe: use menos o carro. Ponto.

O que significa este pedido? Este ano, por ocasião do Encontro Da Nova Consciência em Campina Grande [PB], tive a oportunidade de assistir a uma das palestras mais interessantes deste evento, considerando todas as que já vi desde que – muitos anos atrás – passei a frequentá-lo. O psicólogo Lucas Jerzy Portela deu uma conferência excelente sobre os problemas físicos e psíquicos desencadeados pela carrocracia.

Não pretendo detalhar, nem reproduzir perfeitamente o que Lucas disse. Vou sintetizar as coisas mais importantes, na minha opinião:

1. O uso excessivo de carros causa diversos males físicos e psicológicos.
2. O Brasil peca por se nortear em torno de uma veneração ao veículo automotivo por combustão: o carro.

Quais as soluções apontadas por Lucas? Sim, ele deu várias soluções práticas, e em nenhum momento estabeleceu um manual ou guia que devesse ser seguido, com fórmulas prontas ao estilo de imperativos categóricos kantianos. O que ele solicita [na verdade, não ELE apenas; o movimento pela libertação da carrocracia é muito mais amplo do que a existência do palestrante] é que as pessoas sejam razoáveis para o bem de sua própria saúde. E ser razoável significa pensar.

Por exemplo: se o lugar para onde você vai fica a dois quilômetros de onde você está, como você deveria se locomover? A não ser que você tenha restrições de movimento ou quaisquer outros problemas que justifiquem o carro, você deveria ir a pé. Não faz sentido ir de carro, ônibus ou táxi. Caminhar estes dois quilômetros vai fazer bem para sua saúde. Isso satisfaz inclusive outro ponto salientado por Lucas: a atividade física deveria ser processual, não pontual. Nós deveríamos estar em atividade física constante, ao invés de apenas dedicar uma hora por dia a isso.

Vamos a um exemplo prático e alguns contrastes: da minha casa até minha academia, são 800 metros. Eu vou a pé, todos os dias. Subo uma escadaria considerável e vou caminhando, já me aquecendo. Na volta, são mais 800 metros. 1,6 km de caminhada, sem contar o tempo na academia.

Eu conheço quem mora a 500 metros da minha mesma academia e vai até ela de carro. Além de ser mais um carro nas ruas [e um carro desnecessário, convenhamos], a pessoa ocupa uma vaga de estacionamento que poderia ser de outra pessoa que vem de um lugar mais distante. Um argumento possível “ir de carro é mais seguro” simplesmente não cola, pelo menos não NESTE trajeto. Seria mais honesto se estas pessoas assumissem: “sou viciado(a) em meu carro”. E, claro, tentassem reformular a maneira de usar tal veículo.

Não se trata de instituir o Império da Bicicleta, a Tirania do Pedestre, ou algo assim. A depender da distância e do que se encontre no trajeto [ladeiras imensas, chuva torrencial etc], faz mais sentido usar outros veículos. Fazer valer a razoabilidade é algo ao alcance de qualquer pessoa com inteligência normal e que não esteja profundamente adoecida pelo transtorno compulsivo carrocrático. O que se pede, é: pense no seu movimento pela cidade.

Quando vou para a USP [três vezes na semana], considerando o aperto do horário, eu vou de táxi. 17 reais até onde devo ir. Volto de ônibus, já que na volta não há pressa, o ônibus não vai lotado, e me deixa bem perto de casa.

Fiz uma experiência considerando meu trajeto até a escola onde aperfeiçoo meu inglês. Medi três vezes cada possibilidade.

De táxi, da minha casa até a escola, eu pago 24 reais e levo 30 minutos, às vezes mais, em decorrência do tráfego. É uma loteria.
De ônibus+metrô, eu pago 4,65 reais e levo redondos 20 minutos. O máximo que já levei foram 25 minutos.

Qual o sentido de pagar cinco vezes mais e ainda chegar 10 minutos depois? O conforto de estar sozinho num táxi? O glamour de ouvir o taxista derramando suas opiniões sobre a existência? [comigo quase sempre acontece, eu devo ter uma magnífica cara de machista pra ter que ouvir as piadas que eles contam e outros comentários, sendo que só eles riem até sucumbirem ao silêncio constrangedor que imponho].

Não faz sentido no meu caso, principalmente considerando que o ônibus e o metrô não estão lotados no horário que eu vou para a escola. Se eu vou num horário em que o ônibus está lotado, pego o táxi até o metrô: 12 reais até a estação. Com mais 3 reais, pego o metrô e corto todo o congestionamento, e ainda ajuda a tornar as ruas menos congestionadas. Em 4 estações, chego à escola.

Cada caso, evidentemente, é um caso. O fato é: temos carros, temos ônibus, podemos andar a pé, temos metrôs, há quem use bicicleta. Com tantos recursos à disposição, alguns bem razoáveis a depender do horário, ainda há quem use APENAS o carro. Exclusivamente o carro. SEMPRE.

E é nesta parte que alguém vai dizer “pra você é fácil falar! Eu moro na Zona Oeste e trabalho na Zona Leste! De transporte público minha vida seria uma merda!”. Se você pensou em usar este argumento, simplesmente pare e leia tudo novamente. Eu não estou dizendo que carro é proibido, mau e feio, não estou dizendo que carros são o demônio. Eduardo Jorge também não disse isso em momento algum. Se sua situação pede um carro, use-o.

[Lucas, o psicólogo, chega a ser mais duro sobre isso. Em sua palestra, ele disse que não faz o menor sentido morar tão longe do trabalho. Sugere que, se for seu caso, mude de casa, ou de trabalho. Claro, falar é fácil e nem todo mundo pode se dar a este luxo. Mas faz sentido considerar isso. Sua qualidade de vida aumentará substancialmente, se você conseguir morar perto do trabalho. A diferença será percebida em seu corpo e sua mente]

Pois voltemos aos 20 centímetros. É o tamanho de nossas mãos espalmadas. Olhe pra sua mão. Abra-a. Vislumbre a distância do mindinho ao polegar.

Em recente projeto informado pela prefeitura de São Paulo, Haddad anunciou que irá transformar o canteiro central da Avenida Paulista numa ciclovia permanente. Exatamente: aquele canteiro inútil, ele será um pouco mais elevado e será uma ciclovia permanente. Além disso, passará a fibra ótica por baixo da avenida, retirando da Alameda Santos aquele aspecto horroroso de varal de quinta categoria. Sim, porque até os de Nápoles são mais charmosos.

Esta nova ciclovia vai tomar algum pedaço do trajeto dos carros? Sim. VINTE CENTÍMETROS DE CADA LADO. Isso mesmo, a extensão de sua mão espalmada.

Desespero, agonia: Haddad quer destruir São Paulo. Os donos de carros estão sendo oprimidos, coitadinhos. Vi de tudo subir em meu feed de notícias, hoje, desde reclamações mais moderadas até as completamente loucas: matem Haddad. Odiei o projeto. Ele vai acabar com a Paulista. Haddad quer oprimir os donos de carros [risos].

Meus caros, ninguém precisa oprimir donos de carros. Eles fazem isso uns com os outros, mutuamente, sempre que agem de maneira louca.

É claro, toda essa reclamação não é pelos vinte centímetros. Só mesmo muita má vontade e ódio a priori pra achar que vinte centímetros a menos de cada lado irá piorar ainda mais o tráfego da Avenida Paulista. Aliás, é ódio a priori que parece funcionar contra Haddad e suas ideias: ele é do PT, odeiem-no. Queria eu que Kassab ou qualquer outro prefeito do PSDB tivesse feito isso que Haddad agora ousa fazer. Aquele canteiro ridículo no meio da Paulista, um espaço inutilizado, se converterá em nova opção de trajeto veicular. Eu acho é ótimo.

A castração dos 20 centímetros do espaço para carros, sendo tomada como uma castração simbólica dos pintos carrocráticos, reflete apenas a má vontade diante de uma coisa que não muda o já existente: há um canteiro central largo e inútil na Avenida Paulista.

O que piora o tráfego da Paulista não são estes 20 centímetros a menos de cada lado. São NOVOS CARROS. O que piora o tráfego da Paulista é gente sem noção que anda de carro por ali, sendo que poderia caminhar, pegar o metrô [a linha verde é ótima]. Ou passar a usar a ciclovia a ser inaugurada.

Pausa. Novo exemplo, pra ficar bem ilustradinho: uma das pessoas que estuda na mesma escola de inglês que eu, mora ao lado da estação Brigadeiro. Nossa escola fica pertinho da estação Consolação. Esta pessoa tem a minha idade. E vai de carro. DE CARRO. Ela poderia ir a pé, ela poderia ir de metrô, mas não, ela vai de carro. Não, ela não é aleijada. Ela é viciada. Em carro. Ela é louca. E esnobe. Um dia, perguntei a ela: "mas por que você vem de carro?". Ela respondeu: "porque eu posso".

Porque eu posso. Então tá, né? Só existe a senhora no mundo. Maluca.

O argumento de que São Paulo não é uma cidade europeia para ter tantas ciclovias procede de algum modo. De fato, São Paulo não é Europa, parem de compará-la a Londres, isso ofende Londres. Ela foi feita para copiar Chicago e sua carrolândia. O relevo de altos e baixos não ajuda a quem quer andar a pé ou de bicicleta. Mas você não precisa andar de bicicleta por toda a cidade, ora!

Mas a principal diferença entre Sampa e as cidades europeias não está no relevo. Está na mentalidade. As Américas em geral, do norte ao sul, consideram o carro um símbolo de status e de poder. Europeus são diferentes, neste ponto. Europeus andam, e como andam! Mesmo com o metrô maravilhoso deles. Eles andam. A imagem de gente de 70 anos, magra e definida, andando de bicicleta, é banal em várias cidades europeias.

Desde que vim morar em Sampa, há quase dez anos, só ouço reclamações sobre o trânsito, dos próprios paulistas natos. Alternativas estão sendo dadas. A minha parte eu fiz: podendo ter carro, não o tenho. Não faz sentido em minha vida, não faz sentido em meus trajetos, se preciso de um, pego um táxi. Gasto menos do que gastaria se tivesse carro. Você precisa ter um? Então tenha. Mas reveja seus hábitos, verifique se você faz alguma coisa parecida com as que descrevi neste post enorme. A Europa, que tantos admiram, precisa primeiro ser trazida para dentro de você. Se você fizer isso, talvez os 20 centímetros saiam não apenas da Avenida Paulista. Sairão, também, da sua cintura americana carrocrática.

Alexey Dodsworth Magnavita

domingo, 7 de setembro de 2014

Afinal, quem são "os evangélicos"?

*texto originalmente publicado na Carta Capital: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/afinal-quem-sao-201cos-evangelicos201d-2053.html
Homofóbicos, cortejados pela presidente, fundamentalistas. Massa de manobra de Silas Malafaia, conservadores, determinantes no segundo turno das eleições. De tanto que se falou sobre os evangélicos nas últimas semanas, nos jornais e nas redes sociais, talvez caiba uma pergunta: afinal, quem são “os evangélicos”?
A resposta mais honesta não poderia ser mais frustrante: os evangélicos são qualquer pessoa, todo mundo, ou, mais especificamente, ninguém. São uma abstração, uma caricatura pintada a partir do que vemos zapeando pelos canais abertos misturado ao que lemos de bizarro nos tabloides da internet com o que nosso preconceito manda reforçar. Dizer que “o voto dos evangélicos decidirá a eleição” é tão estúpido quanto dizer a obviedade de que 22,2% dos brasileiros decidirão a eleição. Dizer que “os evangélicos são preconceituosos”, significa dizer o ser humano é preconceituoso. É não dizer nada, na verdade.
Acreditar que há uma hegemonia de pensamento, de comportamento ou de doutrina evangélica é, em parte, exatamente acreditar no que Silas Malafaia gosta de repetir, mas é, em parte, desconhecer a história. A diversidade de pensamento é a razão de existir da reforma protestante. E continuou sendo pelos séculos seguintes, quando as igrejas reformadas do século 16 deram origem ao movimento evangélico, estes aos pentecostais e estes aos neopentecostais, todos microdivididos até o limite do possível, graças, novamente, à diversidade de pensamento – sobre forma de governo, vocação e pequenos pontos doutrinários. Boa parte destas, sem organização central, sem “presidência” nem representante, com as decisões sendo tomadas nas comunidades locais, por votação democrática.
Assim como não existe “os evangélicos” também não existe “os pentecostais”, nem “os assembleianos”: dizer que Malafaia é o “papa da Marina Silva” como disse Leonardo Boff, apenas porque ambos são membros da Assembléia de Deus, é ignorar que, por trás dos 12,3 milhões de membros detectados pelo IBGE, a Assembleia de Deus é rachada entre ministérios Belém, Madureira, Santos, Bom Retiro, Ipiranga, Perus e diversos outros, cada um com seu líder, sua politicagem e sua aplicação doutrinária. A Assembleia de Deus Vitória em Cristo de Malafaia, aliás, sequer pertence à Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil.
Ignorância parecida se manifesta em relação ao uso do termo “fundamentalista”, como sinônimo de “literalista”, aquele incapaz de metaforizar as verdades morais dos textos sagrados. A teologia cristã debate há dois mil anos sobre a observação, interpretação e aplicação dos escritos sagrados, quais são alegóricos e quais são históricos, quais são “poesias” e quais são literais. O deputado Jean Wyllys, colunista da Carta Capital, do alto de alguma autoridade teológica presumida, já chegou à sua conclusão: o que não for leitura liberal, é fundamentalista e, portanto, uma ameaça às minorias oprimidas. (Liberalismo teológico é uma corrente teológica do final do século 19 que lançou uma leitura crítica das escrituras, completamente alegorizada, negando sua autoridade sobrenatural, a existência dos milagres, e separando história e teologia).
Só que isso simplesmente não é verdade. Dentro da multifacetação das igrejas de tradição evangélicas, há as chamadas “inclusivas”, mas há diversas igrejas históricas, tradicionais, teologicamente ortodoxas, que acreditam nos absolutos da “sola scriptura” da Reforma Protestante, mas que têm política acolhedora e amorosa com as minorias. Algumas criaram pastorais para tratar da questão homossexual, outras trabalham para integrá-los em seus quadros leigos; outros, como disse o pastor batista Ed René Kivitz, estão mais dispostos a aprender como tratar “uma pessoa que está diante de mim dizendo ter sido rejeitado por sua família, pelo meu pai, pela minha igreja” do que discutir a literalidade dos textos do Velho Testamento.
O panorama da questão pode ser melhor entendido em Entre a cruz e o arco-íris: A complexa relação dos cristãos com a Homoafetividade (Editora Autêntica), livro qual tive a honra de editar. Nele, o pastor batista e sociólogo americano Tony Campolo, ex-conselheiro do presidente Bill Clinton, diz: “Se você vai dizer à comunidade homossexual que em nome de Jesus você a ama (...) não teria que lutar por políticas públicas que demonstrem que você as ama? Pode haver amor sem justiça? Eu luto pela justiça em favor de gays e lésbicas, porque em nome de Jesus Cristo eu os amo.” Campolo, entretanto, faz distinção entre direitos e casamento: “O governo não deve se envolver nem declarar, de forma alguma, o que é casamento, quem pode ou não se casar”, ele disse. “Governo existe para garantir os direitos das pessoas. Casamento é um sacramento da igreja – governos não devem decidir quem deve ou não receber esse sacramento.” Campolo acredita que esta será a visão dominante entre cristãos americanos “em cinco ou seis anos”.
Entre os evangélicos brasileiros há quem pense desde já como Campolo – distinguindo união civil de casamento. Há quem pense de forma ainda mais radical: que a união civil, com implicações patrimoniais e status de família, deveria valer não apenas para casais homossexuais, mas para irmãos, primos ou quem quer que se entenda como família. Há quem defenda o acolhimento dos gays nas igrejas, mas o celibato para eles. Quem, embora sabendo que mais da metade das famílias brasileiras já não são no formato pai-mãe-filhos, ainda luta para restabelecer esse padrão idealizado. Há, sim, quem acredite que o seu conjunto de doutrinas e o seu modo de vida são fundamentais. Há aqueles que, enquanto estamos discutindo aqui, está mais preocupado se a melhor tradução do grego é a João Ferreira de Almeida ou a Nova Versão Internacional. E há quem acorde diariamente acreditando ser porta-voz do “povo de Deus”, pague espaço em redes de televisão para multiplicar esse delírio (mas, a julgar pelo 1% de intenção de voto do Pastor Everaldo, somente ativistas gays e jornalistas desmotivados acreditam nesse discurso). Esses são “os evangélicos”.
Na fatídica sexta-feira em que o PSB divulgou seu programa de governo, enquanto Malafaia gritava no Twitter em CAPSLOCK furibundo, o pastor presbiteriano Marcos Botelho, postou: “Marina, que bom que vc recebeu os líderes do movimento LGBTs, receba as reivindicações com a tua coerência e discernimento de sempre e um compromisso com o estado laico que é sua bandeira. Vamos colocar uma pedra em cima dessa polarização ridícula entre gays e evangélicos que só da IBOPE para líderes políticos e pastores oportunistas.”
Botelho não representa “os evangélicos” porque não existe “os evangélicos”. Mas Marcos Botelho existe e é evangélico. Assim como existe William Lane Craig, o filósofo que convida periodicamente Richard Dawkins para um debate público, do qual este sempre se esquiva; existe o geneticista Francis Collins vencendo o William Award da Sociedade Americana de Genética Humana; existe Jimmy Carter, dando aula na escola bíblica no domingo e sendo entrevistado para a capa da Rolling Stone por Hunter Thompson na segunda-feira; existe o pastor congregacional inglês John Harvard tirando dinheiro do próprio bolso para fundar uma universidade “para a honra de Deus” nos Estados Unidos que leva seu sobrenome; existe o pastor batista Martin Luther King como o maior ativista de todos os tempos; existe o jovem paulista Marco Gomes, o “melhor profissional de marketing do mundo”, pedindo licença para “falar uma coisa sobre os evangélicos”. E existe o Feliciano, o Edir Macedo, a Aline Barros, o Thalles Roberto, o Silas Malafaia e o mercado gospel. Como existe bancada evangélica, mas existem os que lutaram pela “separação entre igreja e estado” na constituição, e existem os que acreditam que levar Jesus Cristo para a política é trabalhar não para si, mas para os menos favorecidos.
Existe o amor e existe a justiça, como existe o preconceito, o dogmatismo, o engano, o medo, a vaidade e a corrupção. Não porque somos evangélicos, mas porque somos humanos.

Ricardo Alexandre é jornalista e escritor, radialista e blogueiro, Prêmio Jabuti 2010, ex-diretor de redação das revistas Bizz, Época São Paulo e Trip. E é membro da Igreja Batista Água Viva em Vinhedo, interior de São Paulo.