sábado, 12 de outubro de 2013

Os aspectos da liderança - ASOIAF e as lições sobre o poder e governança pt. 1.

[Contém spoilers d'As Crônicas de Gelo e Fogo. Você foi avisado.]

– Posso deixá-lo com um pequeno enigma, Lorde Tyrion? – não esperou resposta. - Numa sala estão sentados três grandes homens, um rei, um sacerdote e um homem rico com o seu ouro. Entre eles está um mercenário, um homem pequeno, de nascimento comum e sem grande inteligência. Cada um dos grandes pede a ele para matar os outros dois. "Faça isso", diz o rei, "pois eu sou seu governante por direito". "Faça isso", diz o sacerdote, "pois estou ordenando em nome dos deuses". "Faça isso", diz o rico,"e todo este ouro será seu". Agora, diga-me: Quem sobrevive e quem morre?
(...)
- O poder reside onde os homens acreditam que reside. Nem mais, nem menos.
- Então o poder é um truque de mímica?
- Uma sombra na parede - Varys murmurou. - Mas as sombras podem matar. E muitas vezes, um homem muito pequeno pode lançar uma sombra muito grande."

Esse interessante diálogo entre Lorde Varys e Tyrion Lannister no livro "A Fúria dos Reis" é decerto um dos mais interessantes de toda a saga d'As Crônicas. Nesta conversa, somos conduzidos à reflexão acerca do maior objetivo dos jogadores dos Tronos: o poder. Mas de onde ele emana? Como o eunuco afirma, ele emana de onde as pessoas acreditam que possa emanar. O poder, sendo tão mutável e variável, é obtido de diversos meios, da forma com o que convir. E isso é brilhantemente retratado na série, através da disputa pelo Trono de Ferro, do uso da religião como uma aliada, do caráter bélico dos dragões.

Mindinho: "Conhecimento é poder".
Cersei (após ordenar diversas ordens aos soldados, incluindo ameaçar matar Mindinho): "Poder é poder."

Temor e amor: os ensinamentos maquiavélicos sob a ótica dos governantes em ASOIAF

A Rainha Dragão, sua governança em Meereen e consequências

"É melhor ser temido ou amado?" Com essa pergunta, Nicolau Maquiavel oferece sua interessante, brilhante e singular visão sobre o caráter de um devido governante em sua magnum opus, "O príncipe". E é visível que Martin traz essa visão para dentro de sua obra, refletindo-a em duas figuras distintas: Daenerys Targaryen e Tywin Lannister. A primeira, pretendente de uma dinastia caída que almeja retornar a Westeros e tomar o que é seu "com fogo e sangue", e o segundo o Senhor do Rochedo e Mão do Rei dos reis Aerys II e de Joffrey I e Tommen I. 

Em seu processo de tomar Westeros Dany toma as cidades dos escravagistas, modificando todo um sistema baseado na escravidão há milhares e milhares de anos. Tais cidades, herdeiras do império Ghiscari (cuja relação conflituosa com a antiga Valíria, o império de origem dos Targaryen, é facilmente associada à Roma e Cartago no nosso mundo), se veem subservientes a esta nova dominante de diferentes formas. Em Astapor, ela reorganiza as lideranças e massacra os Grandes Mestres. Em Yunkai, ela poupa os Grandes Mestres em troca da libertação dos escravos. E em Meereen decide se tornar rainha. Até aí tudo bem, mas a final do terceiro livro começamos a entender as implicações de suas escolhas.

Isso é ainda mais explorado no quinto livro, "A Dança dos Dragões". Os capítulos de Dany neste livro têm sido alvo de diversas críticas, com muitos afirmando que trata-se de um retrocesso, que ela no livro apenas quer dar pro Daario (seu amante) que ela se revela uma terrível rainha. Confesso que pensava assim de certa forma no início, mas as releituras subsequentes me fizeram mudar meus pontos de vista. Não só as releituras, como principalmente um blog excelente chamado "The Meerenese Blot", que se dedica a desmistificar essas maldosas impressões, que cegam muitos leitores do verdadeiro objetivo de Martin com a personagem. Como o autor do blog afirma, a subtrama de Meereen serve para mostrar a luta de Dany contra si mesma. Por que ele afirma isso? Por causa de uma frase de Willian Faulkner que Martin leva como máxima na obra (e que já mostrei aqui em um post anterior sobre ASOIAF): "o coração em conflito consigo mesmo é a única coisa sobre a qual vale a pena escrever". 

Ao longo da Dança a personagem cada vez mais cede em favor de um reinado estável. Para evitar mais mortes pelos assassinos conhecidos como a Harpia, ela concorda em casar com um meereneense. Para garantir que não seja vista como uma estrangeira truculenta concorda que práticas na cidade, desprezíveis aos seus olhos, sejam retomadas. Para evitar a guerra contra os yunkaítas e tantos outros inimigos, concorda que a escravidão do lado de fora das muralhas de Meereen seja restabelecida. Como um dos personagens afirma: "aquele que ser o rei dos coelhos deve por as orelhas de abano". Dany sacrifica mais e mais de si mesmo, por mais relutante que esteja, em prol do que ela mais sonha: paz. Mas será isso suficiente? Até porque, quando ela sobe em seu dragão Drogon e some da cidade, a guerra se torna inevitável.

É interessante ver essa disparidade entre a Dany "conquistadora" da Tormenta de Espadas e a Dany" humana" da Dança dos Dragões, e é dessa suposta diferença que vêm as maiores críticas. Especialmente porque o sonho de muita gente é vê-la em Westeros. Só pra constar, esse não é meu sonho: quero vê-la erguer seu próprio império em Essos. Mas voltando ao assunto: essa suposta disparidade revela que Dany possui culhões pra ser esse governante cujo perfil é traçado por Maquiavel em "O Príncipe". Um governante ideal que inspira confiança e amabilidade aos seus súditos, capaz de atendê-los quando necessário e ser atento às suas necessidades, mas que também sabe como governar com mão de ferro e ser duro quando tem de ser duro, justo quando o momento pede justiça. Talvez a trama de Dany seja sobre amadurecimento do caráter ideal de governança, mas é fato que até agora ela tem se mostrado muito mais "amada" do que "temida". Isso é evidente em passagens como no primeiro livro onde ela tenta ser uma jovem de ser estuprada (o que em nada adianta, pois após a morte de seu marido Khal Drogo e a subsequente dissensão de seu khallasar a garota é estuprada e morta). Na Dança Dany reflete sobre os astaporis sofrendo da terrível doença chamada "égua descorada" que vêm até ela pedindo ajuda, questionando-se se não criou milhares de "Eroehs". Muitas de suas decisões que ela toma são moralmente questionáveis (assim como a de Jon Snow na Patrulha da Noite), mas quais alternativas ela tem, na verdade? Martin genialmente a põe em labirintos e lugares sem saída, fazendo com que ela tenha de tomar a decisão com menores riscos, mas não exatamente a melhor. E isso mostra como estar exatamente no topo do mundo não é bom quando milhares de vidas estão em suas mãos.

Se Dany ainda não foi lapidada para ser uma governante com mão de ferro, como pode ser a rainha ideal para uma Westeros que sangra e agoniza?

O Senhor do Rochedo, um rei oculto

Ao passo em que Dany é conhecida (e criticada) por sua piedade, tal característica definitivamente não é associada a Tywin Lannister. Poucos personagens são tão odiados e admirados em igual medida quanto ele, e confesso que não sei direito o que pensar deste homem. Se por um lado o odeio pelo tratamento frio e às vezes amoral que dá aos filhos (especialmente Tyrion), o admiro pela sua suprema inteligência e habilidade enquanto jogador. Tendo herdado o controle de sua Casa ainda jovem, Tywin governou com extrema mão de ferro para limpar o nome de sua família após a governança vergonhosa de seu pai Tytos. Com vinte anos ele destruiu os Reynes de Castamere que se sublevaram ao seu pai, o mesmo acontecendo com os Tarbeck. Isso o fez ser nomeado Mão do Rei por Aerys II, "O Rei louco". Quando fica claro que ele é quem governa os Sete Reinos com sua eficiência fenomenal logo a inveja do seu rei passa a acometê-lo (além do fato de que Aerys nutria desejos pela esposa de Tywin, Joanna - com a possibilidade de ser pai dos seus filhos, embora seja uma teoria na qual não acredito). Sofrendo com essa inveja insana por vinte anos, é de se entender porque Tywin reservou ao último momento a decisão de apoiar ou não Aerys na sua guerra contra o rebelde Robert Baratheon, gerando o saque de Porto Real e a morte do rei louco pelas mãos de seu filho Jaime.

Quando a série se inicia, toda uma visão negativa aos Lannister é formada na mente de muitos. Mas se não há vilões nesta série, por que os Leões do Rochedo são associados como tal? A subversão em nossas mentes é feita sutilmente pelo Martin ao longo dos livros, mostrando que estes personagens não são quem parecem ser na superfície. De fato, há uma passagem na Tormenta em que Kevan, irmão de Tywin, defende-o de forma emocionante e brilhante. Trata-se de um homem cruel, mas a vida o tornou cruel - tirando o resto de sua humanidade quando Joanna morre no parto de um filho anão. Sua "crueldade" em desprezar Tyrion, armar o RW, saquear a capital do reino e outros atos tão "vis" não diminuem sua inteligência soberba, que fazem dele um dos personagens mais fascinantes de toda a série.

"... Lembro-me da primeira vez que o meu pai me levou à corte, Robert teve de ir de mãos dadas comigo. Eu não podia ter mais de quatro anos, o que significa que ele devia ter cinco ou seis. Depois concordamos que o rei tinha sido tão nobre como os dragões eram temíveis. Anos mais tarde, nosso pai disse-nos que Aerys tinha se cortado no trono naquela manhã, e por isso a sua Mão tomara o lugar dele. O homem que tanto nos impressionou foi Tywin Lannister."”  Stannis Baratheon

Entretanto, é claro que estes atos vis e sua governança rígida fazem com que pouco amor seja inspirado por Tywin (não que ele se importe se as pessoas o amam ou não). Como o próprio Jaime reflete no Festim dos Corvos, mesmo no Oeste ele era mais temido do que amado, e as pessoas não haviam esquecido o Saque a Porto Real. Twyin foi o rei que Westeros precisava em tempos de guerra, e graças às suas estratégias a dinasta Baratheon-Lannister ainda se mantém no poder na série, mas por quanto tempo? Arrivistas e inimigos não faltam. Embora eficiente e indefectível na política, Tywin falhou como pai, e mesmo que seja compreensível que sua melhor parte tenha morrido com Joanna isso não o torna um patriarca melhor. Ele governou por intermédio de reis, e foi mais rei do que aqueles a quem serviu, mas talvez ainda não seja o governante ideal que Maquiavel teoriza, apenas nos tempos de caos como os vividos nos livros atualmente.

"Os homens são idiotas, Jaime. Até mesmo aqueles que nascem de mil em mil anos."  Genna Lannister sobre Tywin

Conclusão e pensamentos finais

Sendo o Senhor do Rochedo e a Rainha Dragão os dois lados da mesma moeda, pergunto: quem melhor governaria Westeros? É uma pergunta quase retórica. Por mais que eu seja fã da Dany, não vejo os Sete Reinos como o destino dela, e foram seus capítulos na Dança que me fizeram crer nisso. Twyin governou o continente por vinte anos, além do seu período como Mão de Joffrey e Tommen, onde praticamente conseguiu o fim da Guerra dos Cinco Reis com cartas e penas. Entretanto, ela ainda pode vir a ser uma governante que saiba transitar tranquilamente entre o amor e o temor quando cada um for exigido de si, ao passo que Tywin não tem mais essa chance.

No próximo post falarei acerca de uma certa teoria, dos direitos de governança e legitimidades.

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