sábado, 12 de outubro de 2013

Os aspectos da liderança - ASOIAF e as lições sobre o poder e governança pt. 2.

[Contém spoilers d'As Crônicas de Gelo e Fogo. Você foi avisado.]

Bom, no post anterior usei as figuras de Daenerys e Tywin para fazer associação com o príncipe de Maquiavel. Aqui venho falar de uma das questões mais sensíveis e comentadas em ASOIAF: a governança por direito e legitimidade do poder. 

Tendo fugido de Westeros quando ainda era um bebê, tudo o que Dany sabe do continente vem de seu irmão Viserys, que gradativamente perde sua sanidade em suas tentativas desesperadas de retomar o trono que perdeu. Ao mesmo tempo em que vemos através da ótica de Ned Stark uma visão gloriosa do (ex)guerreiro Robert Baratheon que destronou o rei louco e assumiu o trono, a visão de Dany é menos favorável, vendo o homem como o "Usurpador" e Stark e Lannister como seus "cães". Afinal de contas os Targaryen reinavam há quase 300 anos e legitimamente o trono pertence a eles.

Será mesmo?

Rebelião de Robert: motivos e teorias

Essa ótica desfavorável à rebelião do Robert acaba sendo passada a muitos fãs. Afinal de contas, derrubar uma dinastia de quase três séculos não é de todo um ato nobre. E os motivos, serão? Considerando o quanto o reino estava em decadência por causa do péssimo reinado de Aerys após o rapto deste em Valdocaso (que é apontado como a gota d'água para sua loucura), o rapto de Lyanna Stark, noiva de Robert, pelo príncipe Rhaegar, e a subsequente morte de Lorde Rickard Stark e de seu filho mais velho Brandon pelas ordens de Aerys, parece perfeitamente sensato que tantos senhores tenham se unido  para derrotá-lo.

Lembremos que de início a intenção de Robert não era ser proclamado rei. Contudo ele foi visto como o mais apto para tomar o trono após a queda Targaryen, uma vez que tinha ligações coma  família pelo lado paterno, o que o tornava primo distante de Aerys e Rhaegar. Contudo, são justificativas pífias para legitimar um direito que poderia ser concedido a qualquer um naquele instante. E mesmo a vitória sobre os senhores do dragão não deu a Robert o que ele mais queria: Lyanna. Mesmo inconsciente de que ela possivelmente não o amava, a perda da amada se reflete em sua figura trágica, transformando o outrora invencível guerreiro num péssimo rei.

Mas... será que o rapto de Lyanna foi realmente o motivo para toda uma rebelião?

Parece-me cada vez mais claro, assim como a vários outros leitores, que vários senhores das Grandes Casas podiam estar envolvidos em uma conspiração secreta para derrubar Aerys muito antes do rapto da noiva de Robert Baratheon. Isso é evidenciado em momentos como n'O Festim dos Corvos onde um meistre aponta como a Cidadela esteve por trás da morte dos últimos dragões Targaryen, evidenciando que a ordem pode ser mais ativa no papel político de Westeros do que se pensa, e n'A Dança, onde a Senhora Dustin revela seu desprezo pelos "ratos cinzentos":

— Se eu fosse rainha, a primeira coisa que faria seria matar todas aquelas ratazanas cinzentas. Correm por todo o lado, vivendo das sobras dos senhores, chiando umas com as outras, sussurrando aos ouvidos dos seus
amos. Mas quem são realmente os amos e os servos? Todos os grandes senhores têm o seu meistre, todos os senhores de menor gabarito aspiram a ter um. Se não se tem um meistre, isso é visto como querendo dizer que se é de pouca importância. As ratazanas cinzentas leem e escrevem as nossas cartas, mesmo para senhores que não sabem ler, e quem poderá dizer com certeza que não estão a distorcer as palavras para os seus próprios fins? (...)

"Foi isso que aconteceu ao Lorde Rickard Stark. O nome da sua ratazana cinzenta era Meistre Walys. E não é inteligente o modo como os meistres respondem só pelo primeiro nome, mesmo aqueles que tinham doisquando chegaram à Cidadela? Assim, não podemos saber quem realmente são ou de onde vêm… mas se se for sufi cientemente decidido ainda se pode descobrir. Antes de forjar a sua corrente, o Meistre Walys era conhecido como Walys Flowers. Flowers, Hill, Rivers, Snow… damos esses nomes a crianças bastardas para as assinalar como o que são, mas elas são sempre rápidas a verem‐se livres deles. Walys Flowers tinha uma rapariga de Torralta como mãe… e um arquimeistre da Cidadela como pai, segundo se dizia. As ratazanas cinzentas não são tão castas como nos gostariam de levar a crer. Os meistres de Vilavelha são os piores de todos. Depois de Walys forjar a corrente, o seu pai secreto e os amigos dele não perderam tempo a despachá‐lo para Winterfell para encher os ouvidos do Lorde Rickard com palavras envenenadas doces como o mel. O casamento Tully foi ideia dele, não tenhais dúvidas, ele…"

Se ficar comprovado que a Cidadela manipulou os grandes senhores para fomentar uma rebelião contra Aerys, teremos muito pano pra manga. Espero que o próximo livro traga mais respostas.

De qualquer modo a inoperância do rei louco pode ser vista como uma justificativa para sua destronação? Consideremos que na linha do tempo houve um precedente "legal" para a escolha de um rei sem os termos de sucessão. À morte de Maekar em 233 DP (Depois do Pouso), um Conselho foi formado para eleger o novo rei. Acabou que este foi seu quarto filho, Aegon V, dito "O Improvável" por ser o quarto filho de um quarto filho. Creio que o objetivo fosse instaurar um novo Conselho que tirasse Aerys do trono e desse-o a Rhaegar (que supostamente podia estar envolvido na conspiração), mas os eventos subsequentes ao rapto de Lyanna levaram a uma mudança de planos. Enfim, fica claro que o direito de uma dinastia podia ser contestado em face de um mau reinado, como era o caso, uma vez que havia prerrogativas legais para fazer tais mudanças.

Mas quando se conquista, há realmente tanta importância a prerrogativas e direitos?

Afinal de contas, a quem Westeros pertence?

Muito se é criticado a Robert pelo que ele fez, afinal de contas ele "tomou o trono dos Targaryen que lhes era de direito e por isso quero que a Dany volte a Westeros e tome o que é dela com fogo e sangue!". Entretanto, será Robert tão diferente de Aegon I, o Conquistador, que com um pequeno exército e seus três dragões conquistou Westeros três séculos antes, unificando seis dos sete reinos em um só? Porque a atitude de Aegon é melhor vista do que a de Robert?

É uma ideia que tenho alimentado há algum tempo. Os feitos de Aegon são cantados e louvados, ao passo em que pedras e mais pedras são atiradas contra Robert - especialmente por muitos do fandom Targaryen. Não me levem a mal, curto demais os Targaryen e sou fã da Dany, mas é preciso abdicar do orgulho cego resultante do amor pelos personagens e raciocinar algumas coisas importantes. Veja bem, Robert tinha um precedente para sua revolta. Mesmo se a "conspiração sulista" for real, os senhores tinham um precedente de certa forma "justo" pra fazê-la. Mas, qual o motivo de Aegon? Por que fazer o que fez? Exatamente como Sor Jorah Mormont diz a Dany:

"Perdoe-me, mas seu antepassado, Aegon, o Conquistador, não conquistou seis reinos por direito. Não tinha direito sobre eles. Conquistou porque pôde."

Essa frase mata a charada toda. Na verdade invalida todos esses argumentos dela de que deve voltar a Westeros porque o trono é seu por direito. Até porque, quem se importa com o que ela está fazendo? Ok, temos os Martell que secretamente tem conspirado em favor dela ao longo dos anos, mas apenas porque Elia Martell, irmã do príncipe Doran e esposa de Rhaegar, foi estuprada e morta no Saque de Porto Real, assim como sua filha Rhaenys. Uma vez que seu filho Aegon foi revelado pra estar vivo e já está em Westeros pronto para tomar o continente, o apoio da Casa pode mudar. E ainda mais quando chegar a notícia de que Quentyn, filho de Doran, foi morto pelos dragões de Dany. Além disso, como expliquei no post anterior, talvez ela não seja a rainha que Westeros precisa agora, enquanto não adaptar-se inteiramente ao lema de sua Casa, "fogo e sangue". Se ela tomar o continente, será como uma conquistadora, e não como "a herdeira de direito".

"Westeros foi o reino do pai dela. Deixe que Meereen seja o seu." A Dança dos Dragões

Essa questão de direitos me parece bastante simples, não importa quanto as pessoas dizem que a Dany merece o trono por ter sido o pai dela. Robert não é pior do que Aegon, que não é pior do que os ândalos ou os primeiros homens. Esses povos foram invasores estrangeiros que invadiram o continente ao longo dos milhares, sendo responsáveis pelo quase extermínio dos primeiros habitantes de Westeros, os filhos da floresta. São esses os legítimos donos do continente, já que essa questão de legitimidade importa tanto.

A rígida justiça de Stannis e seus direitos

Uma vez que os filhos de Robert com Cersei Lannister não são realmente seus e sim frutos do incesto, o verdadeiro herdeiro dele é seu irmão Stannis. É claro, os prognósticos não lhe são favoráveis: seu caráter rígido e gélido inspiram pouco amor, sua justiça férrea não é bem vista por uma sociedade hipócrita e por vezes amoral, a mulher vermelha que o acompanha, a sacerdotisa Melisandre, é uma fanática religiosa que inspira tanto admiração quanto desprezo, e suas forças são ínfimas. Em muitos aspectos, Stannis é o espelho invertido de Aegon. Lutando ferrenhamente por seus direitos e disposto a trazer uma justiça violenta aos Sete Reinos, o que é claro lhe dá muitos inimigos. Um homem trágico, de um fim provavelmente trágico, mas nem por isso deixa de ser um dos meus favoritos.

A razão pela qual torço por Stannis é simples: ele é o rei de quem Westeros precisa. Acima de direitos, legitimidade e razões afins, sua noção prática e dura de justiça é a ideal para um reino que sangra por causa de jogos de poder de homens e mulheres inescrupulosos. Mais do que isso, ele é astuto e usa os recursos que tiver. Graças a Melisandre, ele tem consigo um apoio mágico/religioso deveras útil, embora questionável. Afinal de contas este é um homem justo, mas não é a justiça que encontramos no honrado Ned. Isso fica claro quando a sombra de Melisandre mata Renly, seu irmão caçula e que também tinha se lançado na disputa ao trono, no segundo livro. É um ato truculento e controverso, e não digo que concordo que tenha sido feito. Mas o próprio Stannis demonstra várias vezes que aquilo o marcou profundamente, e é algo que levará pelo resto de sua vida. 

Ainda mais inestimável do que o apoio de Melisandre porém, é o de Sor Davos, que serve muitas vezes como a bússola moral de Stannis. Graças a este homem é que ele entende que precisa lutar por seu reino, e por isso o vemos salvando a Muralha dos selvagens no terceiro livro. Na Dança ele não tem nem Davos nem Melisandre, mas continua em sua campanha para trazer o Norte à sua causa, e há de se dizer que ele tem obtido sucesso em sua empreitada, com Winterfell sendo o próximo passo. Acredito que a campanha de Stannis crescerá favoravelmente no próximo livro, mas isso significa que será ele o detentor do trono? Acho que não, por mais que isso me entristeça. No entanto, continuo na torcida por ele.

Mais do que o "rei ideal", eu vejo que o reinado de Stannis teria sido perfeito se ele e Renly tivessem unido suas forças. Sendo o primeiro um rei para guerra, ele certamente seria capaz de acabar com a Guerra dos Cinco Reis em pouco tempo com o apoio dos Tyrell e do irmão, e se nomeasse este como seu herdeiro poderíamos ver o caçula Baratheon usando suas habilidades diplomáticas e conciliatórias (uma característica mais comum a Robert do que a Stannis, certamente) para garantir a paz após a guerra, a calmaria que sucede sua tempestade, em seu reinado. A aliança dos dois seria fatal aos inimigos, e teria mudado muitos rumos. Mas nenhum estava disposto a ceder um pelo outro, tampouco se aliar, ainda mais com a questão de direito envolvida. Se tivessem olhado além do orgulho e de legitimidades desnecessárias... ah, como teria sido tudo diferente.

Conclusão e pensamentos finais

Enfim, fica claro que a posse do trono por razões legais é um aspecto muito frágil e controverso na saga. Uma vez que não há leis escritas em Westeros e sim um aparente "contrato social" estabelecido praticamente, torna-se quase que impossível determinar a legalidade daquele que se senta no Trono. Ainda mais considerando a situação atual, onde temos um pretendente Targaryen tomando as terras da Tempestade, Stannis no Norte e o filho de um incesto no trono, além das campanhas incessantes dos Greyjoy.

Quando me aventurei a tratar desse assunto me senti ambicioso e ousado. Até porque meu conhecimento de história é bom, mas nem de longe quanto alguns amigos e conhecidos meus, a quem devo muitas das impressões postas aqui. No mais, são ideias e concepções acumuladas por intermédio de conversas e reflexões, assim como leituras de teorias e tópicos de blog. Não é algo 100% original, mas aqui vão os devidos créditos.

E já que eu não tratei de tudo o que poderia tratar, o próximo post será sobre dois dos mais enigmáticos personagens da histórias: Mindinho e Varys. 

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