terça-feira, 10 de setembro de 2013

There are no men like me. Only me.

A subversão na escrita de George R.R. Martin é um dos muitos reflexos da genialidade do autor e do quanto ele acertou ao escolher uma estrutura de capítulos narrados em 3ª pessoa limitada, contando com o uso de vários narradores. Aqui eu quero focar no personagem no qual essa subversão de mentalidade é mais explícita: o Regicida, Jaime Lannister.

Esse texto contém spoilers d'As Crônicas de Gelo e Fogo.

Ao longo dos livros há um natural processo de desconstrução da imagem que criamos a respeito deste personagem no início. Sob a personalidade amoral e arrogante, típica de um guerreiro inigualável, esconde-se um homem deveras complexo e multifacetado, nem herói nem vilão. Um dos mais humanos personagens das Crônicas - e o meu favorito, ao lado de seu irmão Tyrion.

Quando conhecemos Jaime, sabemos quem ele é através da ótica de Ned Stark. Os atritos entre Stark e Lannister ocorrem há anos, desde que o Regicida fez por merecer seu apelido: matando o último rei Targaryen, Aerys II, "O Rei Louco". Ned é um homem honrado, e um regicídio é algo com o que não pode lidar - mesmo que o rei em questão tenha provocado a morte de seu pai e de seu irmão mais velho. Ele não é o único a pensar assim: as pessoas  em geral não têm uma boa impressão do filho do poderoso Tywin Lannister.

Pior: através dos olhos de Bran vemos cometer o abominável ato do incesto com a irmã Cersei. E quando o garoto é pego ele simplesmente diz "as coisas que faço por amor" e o joga de uma torre, para deixá-lo paralítico. Como não odiar um homem que mata seu rei, transa com a própria irmã e joga crianças de torres? E os Lannister são pintados como vilões aos nossos olhos, exceto Tyrion. Inevitavelmente Jaime conquista o ódio da maioria dos leitores. Como eu.

Contudo Martin está apenas preparando terreno para suas reviravoltas...

Jaime... meu nome é Jaime...

A partir do terceiro livro, A Tormenta das Espadas Jaime se torna um dos narradores da história, narrando 9 dos 82 capítulos deste livro. E então vem a surpresa. Ele não é nada do que esperávamos. Quer dizer, ele ainda fez o que fez, e não se ressente de sua amoralidade e orgulho, mas no fundo este não é o vilão que pensávamos que fosse. Na verdade para muitos a mudança de mentalidade em relação a ele já vem desde o livro anterior, A Fúria dos Reis, onde ele tem um diálogo fantástico com Catelyn Stark acerca de juramentos e hipocrisias. Como o Comediante em Watchmen, este é um homem que tem total e completa noção do mundo podre em que vive, fazendo parte desse podre.

Como seus irmãos, ele julga estar suficientemente protegido pelo nome Lannister, até mesmo em momentos de adversidade. E eis que... os mercenários conhecidos como Bravos Companheiros (ou como Saltimbancos Sangrentos) cortam sua mão direita. A mão da espada, a mão da luta, a mão que dá prazer a Cersei. A mão que significa tudo o que ele é. Tendo perdido seu bem mais valioso, como ele poderá viver? Se faz necessário reinventar, reavaliar seus próprios conceitos, e se Jaime já não é aquele homem que pensávamos que fosse, a partir daí passa por um processo de metamorfose que o definirá não só como um novo homem em termos de espírito e personalidade, mas como um favorito de muitos fãs, fãs estes que o demonizavam e o vilanizavam. Como está escrito na sinopse do quarto livro, O Festim dos Corvos, "Todos sabem que o Regicida é um homem sem honra. Ou será que estão todos errados?"

Para muitos, o momento definitivo da mudança de mentalidade quanto a ele reside na cena em que conta a Brienne de Tarth a verdade sobre o Saque de Porto Real e seu regícidio. Descobrimos que Aerys planejava queimar a cidade com fogovivo e assim matar seus 500.000 habitantes, apenas para que o usurpador Robert Baratheon pudesse ser rei de uma "cidade em cinzas". Sendo assim, seu ato mais infame é na verdade seu ato mais humanitário e glorioso. Ao invés de contar a verdade ele omite aquele fato, pois sabe que ninguém acreditará - e quando Ned Stark o vê com seus olhos frios de julgamento, fica claro que ele será julgado pelo resto da vida.

O que está em jogo aqui é nada mais do que nossos próprios julgamentos. Através de um personagem fictício Martin nos convida a uma das mais profundas reflexões possíveis: o quanto somos melhores que os outros para poder fazer pré-concepções? O que nos dá o direito de sermos tão julgadores? A subversão que pontuei no início do texto se refere exatamente a isso. O autor nos dá uma gama de personagens complexos que podem ser julgados das mais diversas formas. "Um ato bom não lava os maus, e um mau não lava os bons(...)". ASOIAF oferece uma gama de personagens complexos jamais vista na história da literatura, e essa ausência de vilões e mocinhos é um de seus maiores méritos, uma de suas marcas registradas. E Jaime é o exemplo perfeito disso.

Essa "confusão" que o autor faz conosco não se expressa apenas em relação ao ato do regicídio. Numa sociedade medieval onde os casamentos são arranjados e o amor é uma palavra banal que as pessoas parecem não entender, um dos relacionamentos mais sinceros é um... incesto. É Martin novamente explodindo nossas mentes, quebrando paradigmas. Usando uma das práticas mais abomináveis em diversas culturas para retratar um dos poucos casos de amor verdadeiro na série. Ou melhor amor meio-verdadeiro. Porque vemos que Jaime jamais amou ou dormiu com alguém que não fosse Cersei, é devoto a ela e pensar em sua amada é o que mais lhe motiva a viver ao longo dos infortúnios que enfrenta no terceiro livro. Mas a recíproca não é necessariamente verdadeira: Cersei ama o poder e a si mesma, e só ama o irmão porque ele é seu espelho invertido, não hesitando em dormir com outros homens se isso vai lhe trazer benefícios. Consequentemente, ao longo do Festim temos a desconstrução desse relacionamento quando as verdades vêm a tona. Eu torço para que Jaime fique com a Brienne no final - eles são tão opostos, mas fazem tão bem um ao outro, que se merecem. Mas é ASOIAF, galera. E não se pode haver expectativa de finais felizes nesta série, ainda mais na situação que Jaime se encontra agora.

Conclusão e pensamentos finais

Pois então, por fim quero deixar registrado que venho sonhando em fazer uma análise completa do Jaime há um bom tempo, pelo fato de ele ser meu personagem favorito (sinto que mais que o irmão, ultimamente). Talvez nem todas as palavras usadas aqui tenham sido suficientes para registrar todas as minhas impressões acerca dele, principalmente porque ele é um personagem complexo demais e que renderia mais e mais discussões. Eu poderia dedicar um texto só pra relação dele com a irmã, de tão complexa que é. O que é unilateral em ASOIAF? Quase nada. Essa é uma série cujas releituras adicionam mais profundidade e entendimento, ao passo em que todas as leituras podem não lhe revelar de verdade o que está acontecendo. Em suas múltiplas camadas, revela um senso de coesão e inteligência que tem inspirado muitos por aí (eu inclusive). E espero grandes feitos pro Regic... Jaime.

Nenhum comentário:

Postar um comentário